Em meio a uma crescente judicialização da dívida bilionária do Estado do Piauí com precatórios alimentares, o governador Rafael Fonteles sancionou no último dia 16 de abril a Lei Estadual nº 8.651/2025, que impõe um teto de 40% para o deságio em cessões de créditos de precatórios a terceiros.
Embora apresentada como uma medida de proteção aos credores originários, a nova legislação suscita importantes questionamentos sobre sua constitucionalidade, eficácia e impacto no mercado secundário de precatórios e sobre na verdade ser uma estratégia para burlar as dívidas do Estado pelo tapetão legislativo.
Sobre a nova lei
A Lei estabelece que contratos de cessão de créditos alimentares firmados com deságio superior a 40% do valor atualizado do precatório serão considerados abusivos. Além disso, a norma determina que ao menos 60% do valor total do crédito deve ser depositado diretamente ao credor original, sob pena de responsabilização. De maneira ainda mais controversa, a lei determina que contratos com deságio superior firmados antes de sua vigência poderão ser alvo de apuração criminal.
Questão de competência legislativa
Especialistas ouvidos pela reportagem apontam um vício de origem na norma, pois a competência para legislar sobre direito civil é exclusiva da União, conforme dispõe o art. 22, I, da Constituição Federal.
Como a cessão de crédito é instituto típico do direito civil, disciplinado pelo Código Civil, uma lei estadual que impõe limites à autonomia privada nesse tipo de contrato poderia configurar invasão de competência legislativa.
Há também preocupação com a retroatividade da norma ao considerar inválidas transações celebradas antes da sua entrada em vigor, o que contraria princípios constitucionais como o da segurança jurídica e da irretroatividade da lei.
A crise no pagamento dos precatórios
A promulgação da lei ocorre em um momento de forte embate entre o Estado do Piauí e o Tribunal de Justiça em torno do plano de pagamento de precatórios.
Em 2024, o governo estadual propôs manter um repasse mensal de R$ 17,5 milhões, valor considerado insuficiente pelo TJ-PI diante da dívida acumulada superior a R$ 2,5 bilhões.
A presidência do Tribunal, com base na Constituição Federal e na Resolução CNJ nº 303/2019, determinou de ofício a homologação de um plano com repasse mensal de R$ 43 milhões, o que levou o Estado a questionar a decisão via mandado de segurança. O pedido liminar foi parcialmente negado, e o Judiciário determinou o bloqueio de contas públicas após o descumprimento das determinações.
Objetivos e possíveis efeitos da lei
Na justificativa oficial da norma, o governo afirma que o objetivo é proteger os credores originários de práticas abusivas por parte de instituições financeiras e empresas de fora do Estado que atuam na compra de precatórios com deságios elevados.
No entanto, críticos da medida argumentam que a nova lei pode ter o efeito oposto ao pretendido, ao desestimular o mercado secundário de precatórios, que tem sido uma importante via para que os credores consigam ao menos parte do que lhes é devido, diante dos recorrentes atrasos nos repasses estatais.
OAB e judicialização em curso
A Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Piauí (OAB/PI) já se manifestou contrária à iniciativa, tendo inclusive atuado como amicus curiae no processo em que se discute o plano de pagamento de precatórios, sustentando a inconstitucionalidade da interferência legislativa estadual em matéria de direito civil.
Diante da sanção da Lei nº 8.651/2025, é provável que novos questionamentos jurídicos surjam nos próximos dias, especialmente quanto à validade das cláusulas retroativas e à compatibilidade da norma com os dispositivos constitucionais e legais vigentes.
Desdobramento e dores de cabeça
A iniciativa do governo estadual, embora bem-intencionada em sua aparência, pode fragilizar ainda mais o cenário de cumprimento de decisões judiciais no Piauí, ao transferir para o mercado privado a responsabilidade pela ineficiência estatal no pagamento de seus débitos.
Em um contexto de crescente judicialização e bloqueios financeiros, a limitação ao deságio em cessões de precatórios parece menos uma política de proteção e mais uma tentativa de controle de danos por parte de um Estado que não tem conseguido cumprir suas obrigações constitucionais.
Segundo um dos que se dizem lesados, o resumo da lei atual é:
“No Piauí, o credor virou suspeito. E o calote, política pública”.