Uma nova rodovia de quatro faixas, cortando dezenas de milhares de hectares de floresta amazônica protegida, está sendo construída nos arredores de Belém (PA) para facilitar o tráfego durante a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), marcada para novembro. A obra, promovida pelo governo do Pará e apelidada de Avenida Liberdade, é classificada como “sustentável” pelas autoridades, mas enfrenta duras críticas de ambientalistas e comunidades locais.
O objetivo da construção é atender os mais de 50 mil visitantes previstos, incluindo líderes mundiais, para o evento climático. No entanto, a intervenção vem ao custo de severos impactos ambientais: o traçado da estrada atravessa áreas de floresta densa, agora transformadas em clareiras extensas, com pilhas de toras de madeira e o solo sendo aterrados para pavimentação, foi o que revelou a matéria de Ione Wells da BBC.
Moradores como Cláudio Verequete, que vivia da coleta de açaí na região, denunciam a perda de renda e a falta de compensação. “Tudo foi destruído”, lamenta. Segundo ele, a comunidade próxima à rodovia sequer terá acesso à nova via, isolada por muros laterais que privilegiam apenas o trânsito de veículos pesados.
Impacto ambiental contestado
Embora o governo afirme que a estrada seguirá o traçado de áreas já antropizadas — como um linhão de energia — e que corredores de fauna, ciclovias e iluminação solar estão sendo incluídos para reduzir os danos, especialistas alertam que a fragmentação da floresta afetará a biodiversidade local.
A professora Silvia Sardinha, veterinária especializada em vida silvestre, afirma que a obra já compromete a reabilitação de animais na região. “Perdemos áreas naturais essenciais para a soltura dos animais e para sua reprodução”, alerta.
O projeto, idealizado em 2012, havia sido repetidamente engavetado por preocupações ambientais. Retomado para a COP30, soma-se a outros 30 projetos de infraestrutura financiados majoritariamente pelo governo federal, com investimentos que ultrapassam R$ 4,7 bilhões.
Duplicação da Rua da Marinha também gera polêmica
Além da Avenida Liberdade, o jornalista Vinicius Sassine da Folha de São Paulo, revelou outra obra polêmica avança em Belém: a duplicação e prolongamento da Rua da Marinha, também em área de vegetação amazônica. A obra rasga uma área verde contígua ao Parque Gunnar Vingren, envolvendo a supressão de árvores de 64 espécies — incluindo espécies ameaçadas de extinção, como o angelim-pedra e a ucuuba.
O licenciamento ambiental foi concedido pela Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) do Pará em agosto de 2024, em meio a críticas do Ministério Público e da antiga gestão municipal, que havia negado a licença. Documentos mostram que a avaliação de impactos ambientais foi concluída em tempo recorde, e técnicos apontaram a ausência de levantamento detalhado da fauna local, onde poderiam ocorrer 133 espécies de mamíferos.
O projeto, que custará R$ 242,3 milhões e conta com financiamento do BNDES, também prevê contrapartidas para a Marinha, no valor de até R$ 74 milhões, para compensar áreas atingidas.
Apesar das denúncias, as obras continuaram após decisões judiciais controversas. Uma liminar chegou a suspender a construção, mas foi derrubada dias depois pelo Tribunal de Justiça do Pará.
Governo defende “mobilidade e legado”
O governo do Pará alega que as obras de mobilidade são fundamentais para garantir a circulação durante a COP30 e para deixar um “legado” para a população. Em nota enviada após a publicação de reportagens críticas, o governo afirmou que a Avenida Liberdade não desmata floresta primária e que as comunidades estão sendo beneficiadas com infraestrutura e serviços.
“O traçado segue áreas já antropizadas. O licenciamento ambiental foi rigoroso, com audiências públicas”, diz a nota.
Ainda assim, críticas persistem de que os benefícios prometidos não chegam à população ribeirinha afetada e que o evento climático pode, ironicamente, estar sendo viabilizado às custas da própria floresta que a COP30 pretende defender.
O paradoxo da COP30 na Amazônia
O presidente Lula e a ministra Marina Silva promovem a COP30 como uma oportunidade histórica para dar visibilidade à Amazônia e reafirmar compromissos ambientais. No entanto, ambientalistas e comunidades alertam para o contraste entre o discurso oficial e a prática em campo.
“Enquanto se discute clima entre empresários e governos, quem vive na floresta continua sem voz”, resume a professora Silvia Sardinha.
A realização da primeira COP na região amazônica acende um alerta: os custos ecológicos das obras para sediá-la podem comprometer a mensagem que o Brasil pretende levar ao mundo.