A troca do litoral cearense por Crateús e parte do territorio como preço

Uma mudança alteraria a vida de milhares, e não se sabe como ficaria a repartição dos territórios

Por Carlos Sousa,

A divisa entre Ceará e Piauí é motivo de disputa que atravessou séculos e chegou ao Supremo. Da praia mais calma em Icapuí, extremo leste do Ceará, às movimentadas ruas da região do Cariri, no sul do Estado, fala-se, quase em tom de contação de lendas, da história que o Ceará teria trocado parte do litoral para ter Crateús. O objetivo era que o estado vizinho, Piauí, tivesse acesso ao mar. Passados quase 150 anos ainda pairam dúvidas sobre a costura da anexação dos territórios. Desde 2011, o caso virou uma disputa no Supremo Tribunal Federal (STF), onde tramita a ação cível originária (ACO) 1.831, que pode custar parte do território cearense.

Foto: Reprodução/Aurélio AlvesLitígio Piauí/Ceará
Litígio Piauí/Ceará

O que está em disputa

Municípios do Ceará:

 

Foto: IBGE/Elaboração: IpeceMunicípios envolvidos
Municípios envolvidos

Municípios do Piauí:
 

Foto: IBGE/Elaboração: IpeceMunicípios envolvidos
Foto: IBGE/Elaboração: IpeceMunicípios envolvidos
O Piauí requer três áreas de litígio que, somadas, correspondem a aproximadamente 3 mil quilômetros quadrados de território. A área em disputa abrange 13 municípios do Ceará, em diferentes proporções.
Três deles são os mais antigos da lista e deram origem a todos os outros:

Viçosa do Ceará (1759),
Granja (1776) e Guaraciaba do Norte (1791).

Os 13 municípios cearenses envolvidos são:
Carnaubal,
Crateús,
Croatá,
Granja,
Guaraciaba do Norte,
Ibiapina,
Ipaporanga,
Ipueiras,
Poranga,
São Benedito,
Tianguá,
Ubajara e Viçosa do Ceará.

Território dos municípios envolvidos

A ação inclui ainda nove municípios do lado do Piauí, são eles:
Luís Correia,
Cocal,
Cocal dos Alves,
Piracuruca,
São João da Fronteira,
Pedro II,
Buriti dos Montes,
Domingos Mourão e
São Miguel do Tapuio.

O fato é outro ponto de divergência, já que a Procuradoria Geral do Ceará (PGE-CE) questiona o fato do estado vizinho reivindicar áreas que já se encontram sob sua administração, de acordo com a demarcação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A troca e a polêmica

Para entender como começou o impasse na área de divisa entre os estados, é preciso fazer um mergulho na história, indo até 300 anos atrás, nos tempos do Brasil colônia. O Brasil português se dividia em dois assim chamados estados: Estado do Brasil e Estado do Maranhão e Grão-Pará. O Ceará havia sido parte deste último, mas, desde 1656 era parte do Estado do Brasil. O Piauí integrava o Estado do Maranhão e Grão-Pará e reivindicou terras da Missão da Ibiapaba, morada de indígenas da nação Tabajara, considerados pertencentes ao Ceará.
 

Foto: IBGEDivisa do Piauí e Ceará em 1872, antes da troca consumada no decreto imperial 3012/1880
Divisa do Piauí e Ceará em 1872, antes da troca consumada no decreto imperial 3012/1880

Em 1720, o rei de Portugal, dom João V, expediu carta régia pela qual toda a Serra da Ibiapaba era reconhecida como parte da nação Tabajara na capitania do Ceará. No século seguinte, o Piauí reivindicou a posse da Freguesia de Amarração, então parte do Ceará. Esse território litorâneo corresponde aos atuais municípios piauienses de Luís Correia e Cajueiro da Praia.

Foto: IBGEDivisa do Piauí e Ceará em 1920, após o Decreto Imperial.
Divisa do Piauí e Ceará em 1920, após o Decreto Imperial.

Interpretações do decreto

O decreto 3.012, do imperador dom Pedro II, do ano de 1880, oficializou a troca de territórios, motivo de controvérsia 144 anos depois. O Ceará cedeu Amarração ao Piauí. Em troca, recebeu a Comarca de Príncipe Imperial, até então território piauiense. Príncipe Imperial corresponde aos atuais municípios de Crateús e Independência.

Em vez de encerrar a disputa, mais dúvidas foram criadas. A troca envolveu então uma parcela do sertão do Piauí para o Ceará, em troca do litoral do Ceará para o Piauí. Entre esses dois territórios, fica a Serra da Ibiapaba. Como fica a situação dela? As diferentes respostas a essa pergunta explicam o litígio secular.
 

Foto: IBGE/Elaboração: IpeceMapa do Ceará antes do decreto 3.012 de 1880
Mapa do Ceará antes do decreto 3.012 de 1880

Leia o decreto

DECRETO Nº 3.012, DE 22 DE OUTUBRO DE 1880. Altera a linha divisória das Provincias do Ceará e do Piauhy. Hei por bem Sanccionar e Mandar que se execute a Resolução seguinte da Assembléa Geral: Art. 1º E' annexado á Provincia do Ceará o territorio da comarca do Principe Imperial, da Provincia do Piauhy, servindo de linha divisória das duas provincias a Serra Grande ou da Ibiapaba, sem outra interrupção além da do rio Puty, no ponto do Boqueirão, e pertencendo á Provincia do Piauhy todas as vertentes occidentaes da mesma serra, nesta parte, e á do Ceará as orientaes.Art. 2º Fica pertencendo á Provincia do Piauhy a freguezia da Amarração com os limites que estabeleceu a Lei provincial do Ceará n. 1360 de 5 de Novembro de 1870, a saber: da barra do rio Timonia, rio de S. João da Praia Acima, até a barra do riacho, que segue para Santa Roza, e d'ahi em rumo direito á serra de Santa Rita, até o pico da serra Cocal, termo do Piauhy.Art. 3º A linha divisória ecclesiastica será identica á civil que fica estabelecida, sendo o Governo autorizado para solicitar da Santa Sé as necesarias bullas.

Foto: IBGE/Elaboração: IpeceMapa de elementos geográficos citados no decreto
Mapa de elementos geográficos citados no decreto

Reações dos estados

Segundo repórter do jornal O Povo, enquanto o Ceará interpreta que o artigo 1º do decreto de 1880 colocou a Serra da Ibiapaba como divisa natural entre os estados, o Piauí argumenta que o trecho estabelece como divisão apenas a Serra Grande ou da Ibiapaba, sem fazer menção a outra serra. Ou seja, a Serra da Ibiapaba é uma das serras da região, mas não necessariamente a única citada no decreto imperial. O Piauí alega que o texto deixa margem para interpretações diversas e que, portanto, a troca de territórios feita na época não contemplava toda a extensão da serra, o que manteria a posse da região com o Piauí. Já o Ceará sustenta que a expressão "Serra Grande ou da Ibiapaba" se refere a toda a serra, incluindo a Serra da Ibiapaba, consolidando-a como a divisa natural entre os estados.

Foto: IBGE/Elaboração: IpeceComparativo da representação cartográfica da divisa entre o Ceará e o Piauí ao longo dos anos
Comparativo da representação cartográfica da divisa entre o Ceará e o Piauí ao longo dos anos

Argumentos do Ceará

Para o Governo do Ceará, com base na análise de mapas e decretos históricos, o decreto imperial tratou apenas dos territórios trocados, sem envolver toda a divisa entre Ceará e Piauí. Permaneceu assim a Serra da Ibiapaba inteiramente no Ceará, com a divisa no sopé ocidental da serra, a parte de baixo, do lado oeste, como seria desde o século XVIII, quando havia os antigos Estado do Brasil e Estado do Maranhão e Grão-Pará. São mostrados diversos mapas feitos ao longo de séculos que mostram que a serra sempre foi parte do Ceará.

Para a procuradoria cearense, o divisor de águas (vertentes orientais e ocidentais) jamais deveriam ser utilizados na região da Serra da Ibiapaba, “território esse que sempre pertenceu ao estado do Ceará”. Os divisores de águas (ou interflúvios) são linhas divisórias localizadas nas áreas mais elevadas do relevo, no encontro de planos que marcam a mudança de sentido no escoamento das águas da rede hidrográfica.

Houve à época um debate na Câmara dos Deputados e no Senado para corrigir textualmente o decreto imperial para deixar claro que os limites traçados no dito artigo dizem respeito somente ao território da comarca de Príncipe Imperial, anexada ao Ceará, e não ao território das duas províncias como um todo.

Argumentos do Piauí

A argumentação do Piauí, no entanto, versa sobre o entendimento de que a divisão deve acontecer no pico, o ponto mais alto da serra, o que eles consideram ser o divisor de águas. “Como se trata de uma serra, um marco divisor sempre é um pico das serras que se fixam os limite, então o ponto mais alto da serra aquele para o qual que divide. O Ceará argumenta que seria o marco o sopé, a parte de baixo da serra, que a serra estaria na sua integridade do ceará, mas essa tese foge até da própria redação do decreto”, explicou o procurador-chefe da Procuradoria do Patrimônio Imobiliário da PGE-PI, Livio Carvalho Bonfim.

Conforme o STF, na ação, o Estado do Piauí argumenta ainda que as áreas indivisas se tornaram, com o passar do tempo, “terras sem lei”, pois não se pode punir os crimes mais diversos ali praticados em razão da regra geral de fixação da competência pelo lugar da infração prevista no Código de Processo Penal (CPP). Pelo mesmo motivo, não se cobram tributos devidos ao Erário e este, por sua vez, não se faz presente na construção e na manutenção de escolas, postos de saúde e estradas.

Esforços Inférteis

Houve ainda uma tentativa de evitar o percalço jurídico.  Em 2012, a Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal (CCAF) da Advocacia Geral da União (AGU) pediu ao IBGE que coordenasse um trabalho técnico para definir uma metodologia, em conjunto com ambos, que possibilitasse o reconhecimento e a identificação do traçado da divisa entre o Piauí e o Ceará.

Em comum acordo, foi demarcada uma área piloto de aproximadamente 30 quilômetros quadrados, entre os municípios de Poranga/CE e Pedro II/PI. Técnicos de ambos os estados participaram.

Foto: IBGEProposta de linha verde intermitente entre piauí e ceará
Proposta de linha verde intermitente entre piauí e ceará

O trabalho chegou a uma proposta de a divisa entre Pedro II e Poranga ser estabelecida em comum acordo entre os estados, numa combinação entre uma linha sinuosa da divisão das águas, dados dos levantamentos fundiários e marcos de pedra na região, devendo sempre prevalecer os limites da posse tradicional como uma situação consolidada.

O Piauí participou da definição da metodologia, mas não aceitou os resultados do trabalho técnico e a tentativa de conciliação foi encerrada. assim, o processo teve continuidade no Supremo. 

O litígio atual

A disputa ganhou nova dimensão com o ajuizamento da Ação Cível Originária (ACO) 1.831 pelo Estado do Piauí no Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011. A ação requer a anexação dos territórios em litígio ao Piauí, com base nos argumentos históricos e nas interpretações do decreto imperial de 1880. O Ceará, por sua vez, contesta as pretensões do estado vizinho, argumentando que a troca de territórios foi devidamente formalizada na época e que a Serra da Ibiapaba sempre foi entendida como a divisa natural entre os dois estados.

Fonte: O Povo

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