Pacote de segurança cheio de vícios e inconstitucionalidades

Ordem emitiu parecer crítico sobre projetos de lei da segurança pública enviados pelo Governo do Estado

A Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional Piauí (OAB-PI) emitiu parecer jurídico detalhado sobre uma série de projetos de lei encaminhados pelo Governo do Estado à Assembleia Legislativa, todos voltados à segurança pública. O documento, assinado pelos advogados Nestor Ximenes e Otoniel Chagas, identificou inconstitucionalidades, conflitos com normas federais e riscos à legalidade de diversas proposições, recomendando a parcial aprovação apenas mediante correções.

Foto: ReproduçãoOtoniel Bisneto

Parecer Crítico da OAB

Inconstitucionalidades e invasão de competência da União

Um dos principais pontos levantados refere-se ao Projeto de Lei nº 32/2025, que autoriza agentes de segurança pública a “conduzir” investigados que descumprirem medidas cautelares diversas da prisão. Segundo a OAB-PI, a proposta fere o Código de Processo Penal (CPP) e a Constituição Federal, pois não existe previsão legal para esse tipo de condução sem ordem judicial. A medida é vista como uma nova forma de prisão não prevista no art. 283 do CPP nem no art. 5º, inciso LXI da Constituição. Além disso, a proposta invade matéria de competência privativa da União, prevista no art. 22, inciso I da Constituição Federal, o que a torna formal e materialmente inconstitucional.

Uso de bens apreendidos pode contrariar legislação federal

O Projeto de Lei nº 33/2025, que pretende destinar ao Fundo Estadual de Segurança Pública os bens apreendidos e declarados perdidos em favor do Estado, também foi alvo de críticas. A OAB apontou que a destinação desses bens está condicionada à legislação federal, como o Código Penal, o Código de Processo Penal e normas do STF, que determinam, por exemplo, que os valores decorrentes de perdimento de bens devem ser repassados ao Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) ou a outros fundos legalmente previstos. O projeto estadual, ao ampliar a destinação para “quaisquer infrações penais”, incorre em vício material.

Medidas cautelares administrativas e supressão de garantias

Outro projeto criticado é o PL nº 34/2025, que autoriza o Estado a intervir em propriedades ligadas a práticas ilícitas, aplicar multas e adotar medidas cautelares como apreensão, destruição e alienação de bens. A OAB-PI adverte que tais medidas configuram restrições severas à liberdade e ao patrimônio, exigindo reserva de jurisdição (ordem judicial), conforme o art. 282, §2º do CPP. A proposta é considerada inconstitucional por atribuir à autoridade administrativa poderes que são exclusivos do Judiciário.

Projeto de destinação de veículos e peças: prazos e omissões

O Projeto de Lei nº 35/2025, que regula a destinação de veículos em fim de vida útil, recebeu parecer favorável com ressalvas. A OAB recomendou ajustes nos prazos de adequação das empresas e maior clareza na definição dos estabelecimentos regulados. Embora não tenha identificado vícios inconstitucionais, a comissão alertou para a necessidade de regulamentação detalhada por parte do Detran-PI.

Sanções administrativas por crimes: possível usurpação de competência penal

O PL nº 36/2025, que estabelece sanções administrativas a pessoas físicas ou jurídicas que pratiquem ou contribuam para a prática de crimes, também foi considerado inconstitucional. A OAB alerta que a proposta fere a competência privativa da União para legislar sobre direito penal. Além disso, o projeto não especifica os crimes abrangidos e não exige condenação judicial, abrindo margem para punições sem o devido processo legal.

Incentivo por metas para policiais recebe parecer favorável

Entre os projetos analisados, o PL nº 37/2025, que institui o Sistema de Compensação por Metas de Segurança Pública, foi o único que recebeu parecer amplamente favorável da OAB. A entidade sugeriu, contudo, a inclusão de representantes da sociedade civil e da OAB/PI na Comissão de Acompanhamento das metas, como forma de fortalecer a transparência e o controle social.

Proteção animal e Estatuto da Vítima recebem apoio jurídico

Os projetos que tratam do Protocolo Estadual de Proteção Animal (PL nº 38/2025) e do Estatuto Estadual da Vítima (PL nº 41/2025) foram elogiados pela OAB por estarem em conformidade com a legislação federal, promovendo direitos humanos e políticas de proteção social. A entidade recomendou sua aprovação integral.

Fundo Estadual para Vítimas de Crimes: ajustes necessários

O PL nº 40/2025, que cria o Fundo Estadual de Reparação às Vítimas de Crimes (FERVIC-PI), foi considerado positivo, mas requer ajustes na origem das receitas. A OAB destacou que recursos oriundos de penas de multa, fianças e perdimento de bens já possuem destinação definida em lei federal e devem ser respeitados.

Obrigatoriedade de programa de saúde para policiais é criticada

O PL nº 39/2025, que obriga policiais civis e militares a participar de programas de saúde biopsicossocial, foi considerado problemático. A OAB apontou que a imposição de sanção disciplinar por recusa em participar de avaliações de saúde pode violar a dignidade da pessoa humana e o direito à intimidade, recomendando que o texto preveja incentivos em vez de punições.

Projeto que proíbe apreensão de motos por dívida tributária é viável

Por fim, o PL nº 42/2025, que veda a apreensão de motocicletas de até 170 cilindradas exclusivamente por débitos tributários, foi avaliado como razoável. A OAB sugeriu, no entanto, que o projeto abrangisse todas as hipóteses de isenção previstas na legislação estadual, para evitar distorções.

O problema é bem mais embaixo

A adoção de uma política de encarceramento em massa como resposta ao avanço das facções criminosas no Piauí está pressionando ao limite o sistema penitenciário estadual. Quem afirma é o advogado Otoniel Bisneto, especialista em direito constitucional e segurança.

“O que está acontecendo no Piauí é um inchaço insustentável”, afirma Otoniel.

“O governo adotou o encarceramento como ferramenta principal para enfrentar facções como o Bonde dos 40, o PCC, o Comando Vermelho, a Família do Norte e até a mais nova, chamada Classe A. Mas isso tem um custo altíssimo para o Estado e para a sociedade.”

Segundo ele, o número de pessoas presas dobrou nos últimos anos, e a conta está ficando cada vez mais pesada. 

“De acordo com dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais, o Estado tem hoje 6.979 presos. Cada um custa R$ 2.843,33 por mês. Isso dá quase R$ 50 milhões saindo direto dos cofres públicos”, pontua.

Otoniel chama atenção especialmente para os presos provisórios.

“O Piauí só tem capacidade para abrigar 644 pessoas presas preventivamente — 607 homens e 37 mulheres. Mas, com a política atual, esse número chegou a 2.613 presos provisórios. São 38% da população carcerária em situação ainda indefinida, o que custa mais de R$ 7,4 milhões por mês.”

Além do impacto financeiro, ele aponta deficiências estruturais e violação de direitos.

“O sistema não tem alas para indígenas, nem para estrangeiros. E, apesar de o governo se dizer defensor da pauta de gênero, não há qualquer estrutura para a população LGBTQIAPN+. Só existe uma cela exclusiva para idosos em todo o sistema.”

O advogado também critica o abandono das normas de acessibilidade.

“Pessoas com deficiência são presas. Isso é fato. Mas também é fato que o sistema não possui nenhuma ala adaptada conforme a ABNT NBR 9050/2020. Temos 160 presos com algum tipo de deficiência, sendo oito cadeirantes, e nenhuma estrutura mínima para garantir seus direitos.”

Para Otoniel, o problema vai além da superlotação e da estrutura física.

“Essa política também tenta burlar princípios jurídicos constitucionais básicos: segurança jurídica, devido processo legal, presunção de inocência, ampla defesa e o contraditório. Além disso, ignora o princípio da legalidade previsto no art. 37 da Constituição, invadindo uma competência que é exclusiva da União: legislar sobre matéria penal e processual.”

Questionado sobre ausência de parceria entre comissões da OAB e a secretaria de Chico Lucas, Otoniel disse não falar por toda Ordem, mas por si e pelos pares de comissão.

“A OAB é uma instituição valorosa e séria, faz seu trabalho baseado no ordenamento e na estrita legalidade e o documento de parecer não é um mero insurgir, mas uma análise série é coerente com as leis, pois temos comissões técnicas plenamente capazes de agir.”

Segundo Otoniel, o próprio secretário de Segurança já menosprezou a atuação da entidade.

“Ele disse que a OAB só critica e não apresenta soluções — como se isso fosse uma realidade. A OAB faz o que lhe cabe: aponta os erros e propõe caminhos, mas o governo prefere seguir num modelo que só agrava a crise.”

Otoniel conclui com uma crítica mais ampla à concepção de segurança adotada pelo governo estadual.

“Eles sonham com uma segurança baseada em armamento, conflito e encarceramento em massa. Esquecem que segurança pública de verdade começa com prevenção, com programas efetivos nas áreas de saúde e educação. Mas isso exige trabalho de base — e não marketing.” 

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